Porque #salveogalpão?

Galpão, skate e citadinidade.

Douglas de M. F. Torquato Março 20, 2023

O Galpão Skate DIY está localizado em Uberlândia/MG, na avenida Floriano Peixoto 4000, no bairro Brasil, e ocupa um quarteirão inteiro. Trata-se do espaço de uma empresa falida, a antiga Casas Uberlândia, centro de distribuição de atacados, que foi abandonado cerca de trinta anos atrás. Até o momento os skatistas ocuparam boa parte do espaço, por volta de 1/4 do terreno, dando a ele uma revitalização importante e utilidade, sua repercussão alcançou o nível nacional e internacional, promovendo inclusive o turismo em Uberlândia. Em tese, trata-se de um patrimônio cultural. A porta de entrada fica na rua Padre Américo Ceppi. O Galpão reúne todo tipo de expressão dos artistas da cidade, da pixação, da dança, da bike, do skate, do patins, do rap e das rimas, da música em geral. O Galpão é um polo de disputas da citadinidade, espaço o qual buscaremos demonstrar através de dados científicos e provas materiais, reconhecidas pelos órgãos acadêmicos, o seu valor e importância da sua representação enquanto patrimônio cultural, em prol da conservação de sua história e manutenção.

Citadino é aquele que, a despeito dos enquadramentos da cidadania, conceito que representa o conjunto civil de direitos e deveres prescritos por leis, exerce sua própria lógica de ocupação, disputa e de uso dos espaços públicos e privados da cidade. Machado (2017, p. 18, 24.) explica o conceito de citadinidade: “É um neologismo derivado do termo francês citadinité para fazer um contraponto à ideia de cidadania.” A citadinidade, é portanto, a capacidade do indivíduo de criar pra si seu próprio modo de vida, sua própria forma de ocupar e locomover-se, de reivindicar seu direito de uso da cidade, a citadinidade é, portanto, as “maneiras de fazer” o cotidiano citadino de uma cidade (Certeau, 2009) de forma um tanto criativa, transgressiva e astuciosa, por vezes até mesmo lúdica. O que acontece no Galpão ao longo de todos esses anos, de uma forma pacifica, é uma prática citadina: a ocupação de um pico: o Galpão skate DIY Uberlândia, um espaço citadino ocupado e preservado principalmente pela citadinidade skatista, abandonado por cerca de trinta anos cuja ocupação dura cerca de vinte anos, motivada pelo descaso da prefeitura para com nosso esporte e prática citadina: o skate, pela carência de espaços que comportem as demandas dos skatistas.

O skateboarding, de maneira lúdico-criativa, se apropria da cidade, é uma forma de reivindicar os espaços para outros usos, uma intervenção, é uma prática do direito a cidade, independente das políticas urbanistas que pretendem tirar o skate das ruas, o skate acontece de forma autônoma no Galpão, o skate é uma ideia, que desorganiza e reorganiza a cidade e seus espaços a partir de seu próprio fluxo de signos, pois o skate aglutina em torno de si diversos setores da sociedade, não só os praticantes do skate mas também os fotógrafos, videomakers, músicos, urbanistas, construtores, jornalistas, escritores, ambientalistas, políticos, revolucionários, estudantes, simpatizantes, etc. Trata-se de uma enorme rede de infinita multiplicidade de agenciamentos, são muitas possibilidades que podem gerar emprego e renda para as pessoas, além da diversão. Este texto, portanto, não é sobre a esportivização do skate, nem sobre manobras, que são muito legais por sinal, porém, o que tratamos aqui são outros importantes pontos, muitas vezes negligenciados, trata-se da produção de cultura através do skate, apropriação do espaço urbano, e de integração de indivíduos de diversas conjunturas, de forma independente. O galpão DIY, desta forma, demonstra a força da união de indivíduos em prol de uma causa comum, independente do poder público e de poderes maiores, como das grandes corporações, pois os skatistas ultrapassam o território limitado das pistas e inventam outros espaços na cidade. Um verdadeiro serviço social. O skate traz uma experiência de rua sublime pelas suas singularidades, única, é uma atividade que incorpora a rua, na medida que a desterritorializa de sua função capitalista, que é de circulação da mercadoria, para fazer desse espaço território do skate, é na rua que se anda de skate “de verdade”, alguns dizem.

Machado (2014) em sua dissertação de mestrado, analisa diversas medidas, das quais o governo de São Paulo se valeu para tentar tirar os skatistas das ruas, para além das tentativas de proibição, primeiramente com decreto de Jânio Quadros em 1988, que solicitava que todos que praticassem esse 'esporte’, nas ruas e em locais públicos, fossem detidos e levados ao juizado de menores, e posteriormente com projeto de lei do vereador Adolfo Quintas em 2010, que pretendia proibir o uso do skate nas calçadas, alegando que o skate poderia danificar os equipamentos públicos da cidade e causar danos aos transeuntes especialmente os idosos, houveram medidas construtivas, como a criação do Circuito Sampa Skate em 2003, no qual di- versas pistas de street skate (modalidade do skate realizada em pistas nas quais os obstáculos emulam os obstáculos das ruas como corrimãos, escadas, vãos, calçadas, hidrantes etc.) foram criadas pelas regiões mais afastadas do centro da cidade, através de uma parceria da iniciativa privada e poder público, com o objetivo de promover valores da cidadania através do skate. São Paulo é a cidade brasileira com mais pistas de skate, de acordo com levantamento feito pelo Guia de Pistas, elaborado pela Revista Cemporcento-SKATE, até 2006 haviam mais de 60 pistas, número que não parou de crescer nos últimos anos. Mas o que o antropólogo observou foi que, na verdade, essa medida contribui para ampliar a sociabilidade dos skatistas, pois levava os skatistas a circularem mais pela cidade, desenvolvendo seu skate pelas ruas, pois para a maioria o foco não estava no campeonato, mas em andar junto e se divertir por aí. Machado (2014, p. 215) observa: “Se para o poder público a cidadania se aproximava, de certo modo, do conceito de civilidade, para os skatistas - ou, para ser mais específico, para os streeteiros - a condição de cidadão estava mais relacionada à sociabilidade e, portanto, à de citadino.” As pistas são, portanto, uma alternativa, e não podem enjaular os skatistas e coibir a prática do skate em espaços tidos como “inapropriados”. Nos diz Machado (2014, p. 215): “Sujeitar esses citadinos às competições com normas precisas, sendo muitas delas morais, e também, confiná-los somente em espaços construídos especialmente para prática esportiva, não detém os devires do universo da modalidade street skate.”. Além disso, as mídias especializadas em skate, principalmente as revistas e marcas que patrocinam vídeos, atribuem mais valor ao skate praticado nas ruas, principalmente onde existem conflitos por seu uso não ser permitido. Há também, devido a isso, a distinção entre o skatista pistoleiro, que só anda em pistas, e o streeteiro nato, que está sempre em busca de lugares skatáveis para serem descobertos pelo seu olhar skatista, através do qual a cidade pode ser lida e ordenada, na constante busca de picos (categoria nativa que explicaremos) pelas ruas da cidade, com o objetivo de filmar manobras, fotografar, “colar” junto e desenvolver esse trabalho pelas ruas, o antropólogo salienta que o campeonato contribuiu para que os skatistas mais novos aprendessem mais sobre esses valores que extrapolam o skate como esporte, e para que se unissem e fizessem novas amizades e contatos, alargando suas redes de sociabilidades, desenvolvendo o skate de rua, que vem a ser o verdadeiro street.

Pico é um termo nativo que designa equipamentos ou espaços urbanos que podem ser utilizados para realização de manobras (técnicas corporais) com o skate. Este termo revela determinada lógica própria da citadinidade skatista, pois os picos são espaços ou partes deste que têm seu uso comum ressignificado para o uso do skate e também para o alargamento de suas redes, sua sociabilidade. Um pico pode ser uma escada de supermercado, uma borda de um banco, um corrimão de algum espaço público ou privado, ou uma praça, um galpão, construções abandonadas ou em progresso, etc. Machado (2017, p. 65.) salienta a explicação deste conceito: “De um modo geral, a categoria nativa pico, quando em referência a um espaço de sociabilidade, se aproxima da noção de “pedaço”, a qual fora proposta por Magnani (2000). De acordo com tal autor, o “pedaço”, em seu sentido antropológico, é definido “quando o espaço – ou segmento dele – assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações” (MAGNANI, 2000, p. 32). Nesse “pedaço”, as relações se dão com base em gostos e em práticas comuns por parte daqueles que ali estão e também pelo cumprimento de certas normas e etiquetas.

O DIY, sigla para Do it yourself, expressão norte-americana muito comum em diversos movimentos independentes, que significa faça você mesmo, é um trabalho livre, criativo, e precisamente não-lucrativo, é um “golpe” no terreno da ordem estabelecida, pois inverte a lógica do “poderoso” ex-proprietário através da invenção de um espaço que é um produto gratuito destinado ao lazer de muitos (operações de verdadeiros artistas). Revelando uma ética da tenacidade (Certeau, 2009), uma prática desviacionista, graffiti, skate DIY, trabalho com sucata, resistência, ocupação. O Galpão é o lugar onde trabalho e lazer se homogenizam e produzem sínteses disjuntivas, através da bricolagem, criando um domínio através do tempo pela fundação de um lugar próprio e autônomo, o que vem a ser uma prática panóptica onde a vista se transforma a partir de um lugar que germina forças estranhas a ordem, onde se pode reobservar e medir, transformar as incertezas da história em espaços legíveis (Certeau, p. 94, 2014.). Por mais de vinte anos os skatistas tem trazido benfeitorias para este espaço que era anteriormente um problema social enquanto esteve abandonado. As forças produtivas se dividem, nessa disjunção embaralham-se os códigos que separam o trabalho e o lazer. Os skatistas deslizam para uma nova fruição de um corpo pleno que tende a escapar da superfície de inscrição ou registro de um um mundo fetichista, enfeitiçado e perverso, a mais-valia é reconquistada pelo trabalhador na construção lúdica de um espaço próprio ao seu desejo, o DIY. Disso se tratam as sínteses disjuntivas do inconsciente, vide o Anti-Édipo: “Do mesmo modo que uma parte da libido, como energia de produção, se transformou em energia de registro (Numem), uma parte desta se transforma em energia de consumo (Voluptas).” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 31). A subjetividade se produz, portanto, com um resto, uma sobra que fica de suas disjunções, ao lado das máquinas desejantes.

Não devemos simplesmente combater essa citadinidade e suas estratégias para conquistar um lugar próprio, ela se produz aí. Sobre estas questões encontro um fundamento em Machado:

“A citadinidade que permeia a prática do skate de rua, embora muito combatida, também é alvo de determinadas pretensões econômicas e político-urbanísticas. Nessas circunstâncias, ao mesmo tempo em que os skatistas se apropriam da cidade, o mercado bem como as governanças urbanas vêm tentando se apropriar de suas experiências urbanas de acordo com seus próprios interesses e planejamentos. A citadinidade promovida pelo skate de rua tem se convertido, inclusive, em produto de marketing, em algo que se coaduna a uma espetacularização da cidade e ao controle de suas paisagens. Uma “tática” que se tornou uma “estratégia”, para utilizar termos de Certeau (2009).” (Machado, 2017, p. 306).

A tática é efeito da astúcia, caça, arte do fraco, estar onde ninguém espera, criando ali surpresas. Daquilo que cada um faz, o que é que se escreve? Esta escrita é o que propomos, para que nossas táticas não se tornem estratégias do inimigo. Não podemos deixar também que forças de fora venham cooptar nosso movimento, deixando se esvair em sua essência, que é o DIY. Na ocupação de um pico através das benfeitorias DIY o skatista produz um golpe na ordem estabelecida se apropriando do espaço baldio, abandonado as traças, e revitalizando este terreno, lhe dando um bom uso, evitando que aquilo se torne um nicho de problemas, nesta manobra o skatista cria uma heterotopia, um outro lugar, que é um espaço de produção de diferença, heterotopia, isto é, espaços de diferença, de ressignificação do espaço no interior do espaço homogêneo, é um conceito foucaultiano, sobre este assunto Brandão diz: “Ao observarmos a emergência do Street Skate durante a década de 1980 encontramos um exemplo concreto de heterotopia! Pois o que era deslizar sobre um skate senão conquistar algum estilo de vida que estivesse sempre mais próximo da diversão e da rebeldia? Tratava-se, fundamentalmente, de inventar novos modos de subjetividade, de leituras e de uso, intempestivo, do corpo no espaço. Evidentemente, isso implicava uma disponibilidade para o desejo, para um tempo de satisfação, de invenção de si e, sobretudo, de re-criação.” (Brandão, 2014, p. 59). Foucault tem uma conferência chamada de Outros espaços, que se encontra no livro Ditos e escritos, (2004) na qual desenvolve essa temática da heterotopia que se aproxima do que é para nós a des- territorialização do Galpão, ou seja, produção de uma outra subjetividade, uma outra relação com o espaço urbano, menor, marginal. Neste mesmo itinerário, Guattari, em Caosmose (2012) trata do espaço urbano como máquina de produção de subjetividade, sua tese é de que a cidade produz o destino da humanidade, as problemáticas urbanas, como as contradições da citadinidade, que se revelam no Galpão por exemplo, de uma cultura marginal que se cria no cotidiano em oposição a um uso oficial da cidade que se impõe, nos mostra que devemos resgatar uma “cidade subjetiva”, devemos criá-la. Para isso surge a necessidade de uma colaboração transdisciplinar (GUATTARI, 2012, p. 152) para inventar esses novos espaços, ou outros espaços, colaboração que deve ser feita entre os urbanistas, arquitetos, cientistas sociais, filósofos, vagabundos, flanantes, ecologistas, para engendrarmos a subjetividade e a cidade que verdadeiramente desejamos. O que Guattari deseja é que possamos ressingularizar as finalidades da atividade humana, retirá-la de um falso nomadismo, que na realidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma modernidade exangue, para aceder as verdadeiras errâncias do desejo, reconquistar um nomadismo existencial. Este nomadismo existencial acessamos também através do skate, que nos lança num devir, na criação das heterotopias. Uma boa analogia é o skate, ou um navio, que é um espaço dentro de outro espaço, uma embarcação frágil, periculosa.

No Galpão skate DIY, temos uma harmonia instável, bricolada, somos como pássaros que botaram seus ovos no ninho de outra espécie, pois o Galpão é um espaço, sobretudo, de disputas entre os próprios citadinos que o ocupam, produz-se ali uma memória num lugar que não lhe é próprio, mas que é capaz de ser circunscrito como “próprio” (Certeau, 2009), as questões que norteiam a disputa giram em torno de quem é este “lugar próprio”? Os “locatários” do Galpão, produzem algo estranho ao presente dado, no lugar do “outro” mas sem apossar-se dele, produzem cultura, esses blocos de percepto e afecto, e ou memória. Essa memória torna válida a transformação e mudança de ordem deste lugar, afim de perder esta instabilidade, por meio do registro dos seus agentes e suas ações, pois nossas práticas do espaço são astúcias da antidisciplina, jogam com a conjuntura presente e se reapropriam do espaço vivido através dessa produção de patrimônio imaterial neste espaço material. Reproduzo o artigo 216 da nossa constituição que revela do que se trata um patrimônio cultural:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. (Vide Lei nº 12.527, de 2011)

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.


O texto constitucional nos garante o direito ao espaço ocupado do Galpão, a partir da noção de patrimônio cultural, abaixo mostraremos algumas nossas provas de que o Galpão é um bem histórico.

Palco de diversos skatistas como Ricardo Porva, skatista profissional, local, responsável pela organização e construção de grande maioria dos picos do Galpão, juntamente com Alan Dante, que em 2019 estreou sua video parte denominada Second Home, totalmente gravada no Galpão, na qual é possível notar a transformação do pico ao longo dos anos, principalmente se comparado com outros vídeos mais atuais do Galpão que serão elencados posteriormente.

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O Galpão é, para muitos de nós, nossa segunda casa. Por nós, este Galpão é considerado uma verdadeira obra de arte, um monumento, Deleuze e Guattari escrevem em O que é a filosofia? No capítulo 7. "Percepto, afecto e conceito”; que toda obra de arte é um monumento, mas não se trata de celebrar o passado, pois este monumento é algo que conserva em si mesmo, no presente, um bloco de sensações, de vibrações, que se dão no acontecimento, na produção de um composto que conserva sensações a partir de si mesmo. Ou seja, são os devires-skatistas que mantém vivo o Galpão e não só sua memória, pois o passado está presente, são as pedras marcadas pelos grinds, slides, as bordas, os obstáculos e toda criação DIY. “O ato do monumento não é a memória, mas a fabulação”. Assim como “não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de infância que são devires-criança do presente”. Para isso não é preciso memória, mas de um outro material que está nas palavras, nos sons, em formas vibracionais, no composto do percepto-afecto. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.198). O Galpão é um museu a céu aberto, ou um santuário, como Ricardo gosta de falar, no qual os skatistas locais são os artistas, zeladores e curadores DIY. O Galpão é nosso pico mais importante, mais relevante no cenário mundial do skate. Em um bate-papo por via de WhatsApp com Porva sobre o galpão ele me disse:

“Acredito que o principal benefício do Galpão para nossa cidade é a questão da união das pessoas, se tornando fortes o suficiente para fazer qualquer coisa de forma independente, usando o poder das redes sociais para atingir o maior número de pessoas, pois quando as pessoas se sentem uma parte daquilo ali, que foi uma conquista, o cuidado se torna comunitário, todos querem cuidar como se fosse seu, e quando muitas pessoas tem um pensamento em comum, coisas grandes acontecem, a mudança é muito rápida, quando a gente transforma um lugar físico como o Galpão, por exemplo. Diretamente acontece uma transformação muito grande em diversos outros setores, um efeito dominó, querendo ou não, o consumo aumenta, a busca por novos filmes artísticos, o graffiti, a arte, de certa forma isso gera receita em todos os sentidos, o Galpão até uns anos atrás era só um lugar abandonado, de uns tempos pra cá, quantas pessoas já passaram por ali? É um giro de pessoas de todo o Brasil, que aumentou muito, recentemente, isso gera receita, pessoas compram peças de skate, artistas compram tinta, vídeos diários nas redes sociais são compartilhados, etc., nós que construímos obstáculos compramos ferragem, cimento, etc. Você percebe esse efeito dominó conforme ele cresce, a partir de um simples movimento de união entre um grupo de pessoas, as vendinhas ao redor aumentam suas vendas, é uma teia de aranha muito sólida, que todos que se identificam com aquele movimento se aproximam. Já parou pra pensar o quanto em dinheiro tem lá no Galpão só de ferragem, dinheiro de vaquinha, dinheiro nosso, cimento, tinta, etc. Não é mais só simbólico.”
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Para dar exemplo dessas práticas imateriais, podemos acessar o seguinte acervo de arquivos oriundos do Galpão. Primeiramente gostaria de elencar o vídeo: Galpão Life de Felipe Guimarães (Biscoito) foi um dos primeiros registros audiovisuais publicados, que deu a conhecer nossa realidade e que chegou aos telões da premiação “melhores do ano” (veja matéria da CBSK) da revista cemporcentoSKATE, na qual o galpão foi indicado na categoria “Atitude DIY” e foi premiado em primeiro lugar como melhor pico DIY do Brasil, disputando com a “Quadrespra” e “Prafinha”, outras famosas ocupações do skate DIY de São Paulo. Ambos espaços revelam uma luta minoritária de criação da “cidade subjetiva” que Guattari falava, isso não se trata de uma disputa capitalista, se o Galpão não tivesse sido premiado não mudaria sua relevância e verdadeira essência, que é o legado que estes espaços deixam para a cidade, de estimular novas formas de ocupação a se desdobrarem em outros espaços.

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A constante divulgação do Galpão nas redes sociais por parte dos praticantes trouxe notoriedade para o espaço, e em uma conversa informal Alan Dante, quando estava andando de skate em uma pista de São Paulo, convidou Ricardo Dexter para conhecer o pico e dar sua contribuição, uma vez que Dexter é o apresentador de um programa do YouTube que constrói obstáculos em picos DIY e divulga a cultura DIY; Recebemos a visita dos paulistas Ricardo Dexter, Caio Peres e Marcelo Mug, que trouxeram apoio de marcas como a Vans para construção de um obstáculo e gravação de um episódio do quadro “pedreiragem” do canal Black Media (Veja as fotos aqui). Este vídeo foi substancial para a premiação do Galpão no “melhores do ano” devido sua ampla divulgação em todo Brasil. Aqui vemos claramente as contradições da citadinidade, a espetacularização dos corpos e do espaço pela captura capitalista, que transforma em produto, negócio, entretenimento, aquilo que na verdade se trata de uma cultura menor, marginal, de resistência ao capitalismo.

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Recentemente também, devido à visibilidade que as olimpíadas trouxeram para o skate, o Diário de Uberlândia publicou uma matéria que fala sobre o Galpão.

Graças a esta premiação o Desafio de Rua, da revista CemporcentoSKATE, que ocorreu na nossa cidade primeiramente em 2003, retornou em 2022 contemplando o Galpão em sua trajetória, deixando um belo registro audiovisual do nosso espaço e ocupação.

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Uma mídia internacional, o The Berrics, divulgou inclusive um vídeo de Marcelo Profeta manobrando no Galpão neste dia.

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Houve a criação de um longa-metragem, com incentivo da prefeitura de Uberlândia através do PMIC (programa municipal de incentivo a cultura), o Doc Skate Udi, que registra a perspectiva de dezenas de entrevistados sobre os diversos significados e relações que o skate construiu na cena de Uberlândia, desde seu aparecimento na cidade. Este filme trabalha a percepção histórica do desenvolvimento do skate na nossa cidade, seus problemas, embates políticos, dificuldades, e soluções encontradas, reunindo diversos arquivos históricos. A première do documentário Doc Skate Udi, que mostra que, nas palavras de seu realizador, Gustavo Henrique: “A essência do skate uberlandense e suas principais conquistas sempre ocorreram no melhor estilo DIY que veio se co-criando e expandindo suas raízes nos tempos atuais.”, ocorreu no dia 24/09/2022 na pista de skate do Jardim América e contou com show de bandas e campeonato de skate. A revista CemporcentoSKATE fez questão de divulgar a première em uma matéria online. O Documentário mostrou muito sobre a história do Galpão, e é um conteúdo relevante para justificar a ocupação e tombamento do Galpão, provando que se trata de um patrimônio histórico da nossa cultura. Na sexta-feira 04/11/2022 ás 18:30, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) no auditório do bloco 5O-B houve a exibição e debate sob o filme documentário, realizado pelo PET do curso de ciências sociais: Doc Skate Udi. Tivemos como objetivo criar discussões e reflexões coletivas sob as formas, necessidades e perspectivas que se apresentam fundamentais para manutenção e desenvolvimento do skate local sob a ótica da comunidade skateboarding uberlandense, de diversas áreas do conhecimento acadêmico e do poder público.

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Biano Bianchin, skatista profissional e apresentador do quadro Construa, da revista cemporcentoSKATE, passou por nossa cidade recentemente, Gustavo Henrique diz: “Biano é um dos principais nomes do skate nacional, está presente na cena a décadas e foi vencedor do desafio de rua de 2003 em Uberlândia, em um corrimão que ficava na escada do terminal central. Esse corrimão foi descartado e reaproveitado pelos Skatistas locais que ô chumbaram na praça do bairro Tibery.” Nessa visita Biano trouxe um obstáculo para um pico DIY novo que está sendo construído no bairro Lagoinha; Outra pista que foi revitalizada através do legado que o galpão trouxe e rendeu um belo registro foi a mini-ramp do bairro Luizote. Na descrição do video consta que: “Esse rolê que só foi possível graças ao investimento da premiação da @cemporcentoskate pelo trabalho feito no @galpaoskateudiy e pela união da comunidade, dos locais e pela coordenação e atitude dos mestres @alansdante e @ricardoporva”.

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Além dos diversos acontecimentos supracitados devemos dar notoriedade para o projeto social Amor Sobre 4 Rodinhas do instituto Viva Iris, e também Conexão AME Esportes, que em parceria realizaram uma ação no Galpão com crianças portadoras de deficiência, trazendo skates adaptados para que todos pudessem andar independente de suas limitações físicas, promovendo a inclusão no esporte e no espaço cultural do Galpão. As fotos dessa ação estão disponíveis no site do instituto.

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O skate, a partir de uma série de artimanhas, revela a arte do fraco (o skatista, vagabundo, flanante), que vem para colocar em cheque uma cidade que muitas vezes é opressora, moldada pelas forças do capital, forças da política. Uma cidade que atende ao anseio e necessidade de reprodução do capital somente, que se revela nessa segregação que é produzida, numa ótica imobiliária de controle dos espaços urbanos, gentrificação, higienização. O skate expõe essas desigualdades e oferta a ampliação dos espaços públicos e a reivindicação em prol do direito ao uso da cidade. Machado em sua obra investiga as contradições da citadinidade, e nos diz: se por um lado a citadinidade skatista constrói a cidade por outro lado também destrói (MACHADO, 2017, p. 306) e se torna agente de um urbanismo que reconfigura as desigualdades, a citadinidade está sempre em uma dinâmica relacional, o DIY é no espaço urbano visto principalmente como uma intervenção da marginalidade, astúcia ou tática menor, de resistência, contudo, pode passar por um ethos neoliberal de gerenciamento da cidade e se tornar uma estratégia de opressão, conforme a ação de determinados protagonistas, pessoas que cuidam dos espaços com a premissa de “trazer vida” ou “trazer outro público” acabam por expulsar citadinos mais fracos e vulneráveis, em situação de rua, por exemplo. Dito isso, buscamos evidenciar em nosso estudo urbano a dinâmica situacional e relacional das ações e intervenções que se dão na cidade por meio do skate e como o skate se espetaculariza, atraindo mídias de fora, marketing urbano etc. Os skatistas não podem se tornar paladinos da gentrificação. Portanto, o que acontece no Galpão é a formação de um espaço ontológico que abriga modos singulares de produção de subjetividade. O Galpão é o reconhecimento dessas práticas de apropriação deste espaço abandonado pelo proprietário, a ação e existência desses sujeitos que são autores e atores de operações conjunturais, são a insurgência de uma prática popular que transforma o ambiente, ambiente este que é nosso objeto de estudo e lugar de onde estudamos e produzimos cultura, linguagem própria.

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Bibliografia

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Douglas de M. F. Torquato ( Mestre em Filosofia pela UFU )

Mestre em Filosofia pelo PPGFIL da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) com a dissertação: A filosofia da imanência e a arte do skateboard. Membro do grupo de Estudos da filosofia de Deleuze e Guattari com foco no "Anti-Édipo" e "Mil-platôs". Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 2018. Principais áreas de atuação: Esquizoanálise, Espinosa, educação no ensino médio, Metafísica, Metapsicologia, filosofia da mente, filosofia contemporânea, materialismo histórico dialético, história da filosofia moderna, história da filosofia antiga, leitura e produção de texto. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Composição Musical e produção audiovisual. Pesquisa voltada para Filosofia contemporânea, Esquizoanálise, Antropologia Urbana, Artes. Pesquisador do skate em Uberlândia.